Os novos Termo de Uso do Instagram fala sobre muito mais problemas do que você imagina
Se você tem interesse por temas sobre sexualidade (ou se ama Madonna e viu ela se pronunciar sobre o assunto), provavelmente está atento para o assunto da semana: as mudanças nos Termos de Uso e Diretrizes da Comunidade do Instagram, pertencente ao Facebook.inc.
Por 48 horas eu fiquei remoendo o tema e pensando diversas vezes sobre como vir abordar isso. Afinal, é muito fácil, para quem pesquisa modulação de comportamento e tecnologia há quatro anos cair no ostracismo acadêmico, pouco prático para essa situação específica, que demanda resistência real, imediata e prática.
Mas assumindo o desafio, vou tentar mesclar o que há de melhor dos dois mundos: o que a academia já vinha falando sobre isso, os impactos diversos em nossa vida e, principalmente, alertar: há uma corda arrebentando para um lado extremamente frágil neste processo.
Vamos juntos nisso?
O QUE DIZ OS NOVOS TERMOS DE USO
Entrou em vigor no dia 20 de dezembro de 2020 a nova atualização dos Termos de Uso do Instagram — que é uma espécie de “legislação” do uso da plataforma. Ele faz parte de uma série de documentos, que incluem:
- Política de Dados;
- Diretrizes de Comunidade;
- Dicas de Segurança, entre outros.
Basicamente, ali determina-se o que pode e o que não pode, e quais serão as sanções, como banimento, silenciamento, remoção de conteúdo, entre outros. Vale lembrar que a transparência é um valor fundamental nestes ambientes, principalmente, por parte da empresa para com o usuário. Afinal, estamos em uma relação vertical: eles coletam dados em demasia sobre nós, sabem mais sobre nós do que nós mesmos, e nós não sabemos quase nada sobre eles e o que é feito com nossas informações.
Dito isso, algumas das principais mudanças recentes foram:
- uso dos canais de denúncia de forma indevida, de forma fraudulenta ou sem fundamentos pode ser passível de banimento (pense em quantos conteúdos você denunciou e que eram legitimamente ofensivos, mas foram considerados corretos por um analista);
- não pode-se aplicar “engenharia reversa” no app;
- em caso de uso indevido, o banimento poderá ocorrer em todos os serviços fornecidos pela Facebook.inc, o que inclui, seu Whatsapp e Facebook;
- conteúdos que recrutem profissionais para atividades sexuais, solicitação sexual explícita e que indiretamente, ou implicitamente, convide para atos sexuais estão proibidos;
- elementos sugestivos de atividades sexuais (gírias regionais, nudez parcial ou total, uso de emojis característicos e arte erótica digital) também estão proibidos;
- penalização caso o usuário tente levar a pessoa para fora do Instagram (por exemplo, o famoso “clique no link da bio”).
QUEM SAI AFETADO COM AS MUDANÇAS
Temos dois “grupos” de pessoas que são afetados nisso, de forma micro e macro. Na parte macro, todos nós, como sociedade, perdemos com essas mudanças. Apesar de sempre rebater que não podemos ficar refém de uma única empresa para nossas comunicações e serviços no ambiente online (como Google, Facebook.inc, Amazon, entre outros), a realidade é: eles dominam o mercado atualmente. E isso gera o efeito de rede: se as pessoas estão ali, mais pessoas continuarão a fazer parte da rede, pois não querem perder nada (efeito FOMO — Fear of Missing Out, ou, em português, “Medo de ficar de fora”).
Quando, por exemplo, gera o interdito de que um “mamilo feminino é erotizado e, portanto, não pode estar presente para não ofender outros usuários”, reforçamos, mais uma vez, que, primeiro, isso deve ser escondido, pois a sexualidade é um campo que não deve vir a tona no debate público.
Segundo, continuamos associando a ideia de que o erotismo é ligado à reprodução, logo de partida. Ou seja, não há contextos nos quais um mamilo feminino (reforçando bem isso, já que o corpo masculino é liberado) é, simplesmente… bom… mamilos. E só. E soa como se outros contextos não fossem “erotizáveis”, um profundo erro. Por exemplo, para quem é podólatra, uma composição com pés pode despertar muito mais a libido do que genitálias, por exemplo. Ainda vivemos uma normatização de um sexo “convencional”, para fins reprodutivos e isso agora é reforçado, ainda mais, com esse interdito gerado nas redes sociais.
A grande questão é: atualmente, são esses espaços que definem, socialmente, o que “existe” e “não-existe”. Se não está lá, sendo visto, não faz parte das discussões sociais. E a sexualidade não pode ficar relegada a um papel de coadjuvante, ou inexistente, no atual cenário.
Essas tentativas de “puritanismo das redes sociais” do Facebook.inc não é novidade. Em 2018, a primeira atualização mais radical dos termos envolveu proibição de solicitação de nudes e proibição de postar conteúdo de arte erótica. Em 2019, outra atualização proibiu o uso de emojis de conotação sexual e proibição de que usuários encaminhassem para outros usuários perfis que continham conteúdo pornográfico.
Parece que os responsáveis pela elaboração das diretrizes da comunidade possuem uma verdadeira “fobia de sexualidade e sexo”, pois, ao invés de criar espaços seguros para diálogos saudáveis sobre o tema e o trabalho dos sex workers, prefere criar mecanismos que dificultem suas permanências na plataforma.
Um segundo grupo — e que aí sofre muito mais e é o lado fraco dessa corrente — são os(as) sex workers, ou seja, todos os profissionais que, de alguma forma, estão envolvidos com atividades envolvendo sexo e sexualidade, entre eles:
- terapeutas sexuais e sexólogos;
- dominatrix, pro-domme e pro-dom;
- camgirl, camboy, camperson, enfim;
- garoto(a) de programa;
- educadores sexuais;
- proprietários de sex shops;
- vendedores de lingeries, entre outros.
O mercado erótico é muito amplo e, por mais que algumas críticas possam ser feitas sobre o fato de que é uma área altamente procurada como uma “saída” em momento de crise financeira (as armadilhas do neoliberalismo, que gera essa decisão como “solução” e não como “escolha”). E muitas pessoas dependem, justamente, dessas redes sociais com maior alcance para chegar ao seu público.
Pense, por exemplo, em uma pessoa que começou a revender produtos de sex shop agora. Não tem dinheiro para montar uma plataforma de e-commerce, hospedagem, pagar anúncio, entre outros. Depende do alcance orgânico presente em sites como Facebook e Instagram e realiza suas encomendas por ali.
Com a mudança nos termos, essas pessoas, que já estão em situação frágil e vulnerável encontram ainda mais barreiras para conseguir divulgar seu trabalho e, pior, pode perder contas essenciais para seu trabalho (como o Whatsapp, o principal app de conversação no momento).
A conduta do Facebook.inc, com a atualização dos Termos de Uso, é potencializar a marginalização destes profissionais, que encontram no espaço das redes sociais, uma forma de exercerem suas atividades de forma mais segura, com uma exposição controlada, minimizando os riscos de abusos, agressões e violências — ainda mais em um contexto de pandemia pelo Covid-19.
Importante lembrar que o Facebook.inc se pronunciou e disse que não há uma perseguição aos sex workers e que nada vai mudar. Contudo, as mudanças nas diretrizes não apontam isso e demonstram um reforço no conservadorismo e puritanismo neste espaço.
Outros sites apontam que mudanças de diretrizes para conteúdos NSFW em outros momentos também não representaram alterações práticas. Contudo, para os produtores da área de sexualidade, que sentiram a intensificação do shadowban (ou seja, quando um conteúdo é penalizado pelo algoritmo com redução no alcance, mas permanece disponível, porque ele não fere as diretrizes da comunidade. O produtor de conteúdo só percebe isso ao notar a queda descomunal do alcance), é notório que algo está mudando, e não é para melhor.
Assim, é fundamental que estejamos pensando: por que ainda estamos “apostando todas as fichas em um único cavalo” que, há anos, demonstra ir contra a divulgação de uma sexualidade livre e plena? A resposta é óbvia: eles detêm praticamente o monopólio do mercado de redes sociais (três das aplicações mais utilizadas no mundo pertencem a Facebook.inc). Contudo, isso não significa que não possamos oferecer resistência, buscar outros lugares, confrontar esse monopólio, unirmos e desenvolvermos soluções que permitam a vivência de uma sexualidade plena e livre.
Além disso, não é novidade que o Facebook.inc possui diversos dilemas éticos em suas atividades:
- remoções de conteúdo arbitrárias e mantendo outras, não condizendo com sua própria Política de Comunidade (como verifiquei em pesquisa em 2016);
- pesquisas sendo feitas com usuários sem comunicação e consentimento, o que fere a ética da pesquisa científica;
- denúncia de más condições de trabalho justamente sobre os colaboradores que trabalham na revisão de denúncias;
- falta de transparência sobre os dados que são coletados dos usuários;
- quebra da privacidade do usuário;
- escândalo da Cambridge Analytica, que levou Mark Zuckerberg a depor durante 5 horas para o Senado dos Estados Unidos.
Esses são apenas alguns exemplos de como valorizamos e colocamos como papel central nas nossas interações sociais uma empresa que possui uma conduta de ética questionável, mas exige um puritanismo e conservadorismo de seus usuários. Portanto, cabe repensar: de que forma podemos oferecer resistência a isso e não ficarmos reféns do monopólio da empresa (que, inclusive, foi denunciada pela Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos por isso)?
MODULAÇÃO DE COMPORTAMENTO E SEXUALIDADE
Daí entro no campo mais “safe space” para mim e que deve entrar em debate aqui, sem o ar academicista da discussão, para entendermos o que está em jogo. Ao longo da história, a sexualidade humana esteve sempre aos olhos atentos do Poder.
Interditos, julgamentos morais, a narrativa do “pecado” gerando coerção por medo da “punição divina”, a proibição explícita em lei de relações homossexuais, o surgimento da monogamia (e suas consequências sobre a sexualidade) como forma de gerar a passagem sucessória de bens hereditários, entre outros, foram proibições explícitas que, posteriormente, deram passagem para o apagamento das “sexualidades desviantes”.
Ainda que não mais proibidas, passaram a ser invisibilizadas e patologizadas, com o respaldo de uma narrativa cientificista: se não é sobre reprodução, não é sexo, é desvio, é doença, deve ser tratado na psiquiatria. Assim, desejos “desviantes”, o sexo pelo prazer, as relações homossexuais passaram do interdito da moral judaico-cristã para o apagamento e patologização científica, por meio das sciencias sexualis. Foi a partir daí que sadomasoquismo, homossexualidade, transsexualidade, voyeurismo, travestismo fetichista (utilizando aqui os termos presentes no CID 10 e DSM-4) passaram a ser considerados doenças, mesmo com a presença de consensualidade na prática entre os indivíduos.
Eis que a Revolução Sexual chegou nos anos 1960 e as discussões sobre isso puderam vir a tona. Ainda demoraria pelo menos mais quase 60 anos para que o óbvio ocorresse: a retirada do que falamos acima como doenças, saindo dos manuais CID-11 e DSM-5, que norteiam as práticas da psiquiatria e psicologia.
Contudo, sejamos claros: o controle sobre os corpos, e sobre a sexualidade, tem sua função político e social. E o Poder não está tão afim assim de abrir mão dessa possibilidade.
Eis que as tecnologias digitais chegaram. E antevendo a revolução que isso traria, bem como de que forma isso poderia ser utilizado pelo Poder, Deleuze trouxe o conceito de “modulação de comportamento” (quem tiver interesse de aprofundar mais nessa teoria, indico este livro).
Não há necessidade de ficção científica para conceber um mecanismo de controle que forneça a cada instante a posição de um elemento em meio aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginava uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças ao seu cartão eletrônico, que removeria qualquer barreira; mas, do mesmo modo, o cartão poderia ser rejeitado tal dia, ou entre tais horas; o que conta não é a barreira, mas o computador que localiza a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal
Gilles Deleuze (1990, in “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle”).
Além de saber tudo o que fazemos, o que gostamos e o que não gostamos, hoje é possível definir aquilo que vemos e que não vemos. E bom, se não é visto, não gera questionamento, não é mesmo? Como vamos refletir, por exemplo, sobre sexo não se limitar à penetração, se as instituições todas reverberam isso (Estado, escolas, noticiários, entre outros)? Hoje são as redes sociais que fazem o papel de “gatekeeper”, ou seja, os algoritmos preditivos (e termos de uso que norteiam suas ações) que definem o que deve ser visto e o que não deve ser visto.
Ao não abrir espaço para podermos falar, abertamente, sobre (a)sexualidade(s), educação sexual, saúde sexual, entre outros temas, estamos, novamente, marginalizando comportamentos “desviantes” da moral existente (e reforçadas por mais de um século de respaldo científico patologizante das “sexualidades desviantes”). Contudo, agora quem dita as regras são empresas (big techs) que, não só definem aquilo que não podemos ver, mas reforçam aquilo que devemos ver, consumir, discutir, ou seja, modulando nosso comportamento nesse aspecto.
Isso significa que todos somos fadados a isso? Não. E é aqui que eu me posiciono como pesquisadora, produtora de conteúdo e ativista nessa área: não, não somos. E nós, que estamos aqui ainda conseguindo debater, ler sobre o tema, precisamos pensar sobre isso. Porque não é apenas a visão social sobre sexualidade que está em jogo, mas também, possibilidades de sobrevivência de muitas pessoas marginalizadas.
Não cabe neste artigo, especificamente, detalhar que trabalhar como sex worker não deveria ser uma “última saída” em um momento de crise, bem como o debate sobre a exploração sobre os corpos (que, também, muitas vezes está atrelado ao patriarcado. Teremos tempo e espaço para voltar nessa discussão, sem dúvida.
Neste momento delicado, de crise, no qual muitas pessoas estão encontrando nisso, seja por prazer, desejo, ou realmente, como única forma de subsistência para ela e familiares, é preciso defender que essas pessoas possam exercer seus trabalhos. É preciso, com urgência, entender o que está em jogo e garantir o quanto antes uma resistência, fortalecendo essas pessoas nesse momento tão delicado.
Dê suporte, apoie, dê voz, divulgue essas pessoas. Lute, ofereça resistência. Para aqueles que podem e possuem domínio tecnológico para isso, pensar em saídas e soluções para essas pessoas também é fundamental. O importante é: não podemos nos calar ou ficarmos inertes. Há muito em jogo e pessoas muito vulneráveis que estão sofrendo, de imediato, esses efeitos.
Sejamos resistência. Vamos juntos?