Métodos contraceptivos: três discussões necessárias sobre o tema
Uma pequena ressalva antes de começarmos o texto, para ambientar quem está chegando: ao longo desse texto, usaremos as expressões “pessoas com útero” e “pessoas com pênis” por uma razão importante: discussões sobre gênero. Um homem trans que não tenha feito histerectomia pode engravidar. Uma mulher trans que não tenha feito correção de gênero pode engravidar uma outra pessoa. Pessoas gender fluid (que transitam entre possíveis gêneros) e agênero (que não se identifica com nenhum gênero específico) também podem passar por isso. Por isso, para tornar esse texto mais aberto e acolher essas diferentes identidades de gênero, optamos por essa nomenclatura.
Nos momentos em que falarmos sobre “mulheres” e “homens”, a provocação é para falarmos de questões históricas ou discussões que permeiam relações entre mulheres e homens cis (ou seja, quem se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu), em relacionamento heternormativo, por tratar-se de questões estruturais ou específicas desse tipo de relação. Vamos lá!
18 de agosto de 1960: o Enovid-10 era lançado nos Estados Unidos, a primeira pílula anticoncepcional do mundo. Um marco importante, gerando uma verdadeira revolução sexual.
A camisinha já existia (o modelo mais próximo do que temos hoje, feita de látex, se popularizou em 1930), mas havia um ponto delicado: cabia ainda ao homem aceitar o seu uso. Desconforto, questões religiosas, falta de sensibilidade, entre outros argumentos, faziam com que eles se recusassem ao uso.
A partir do seu surgimento, gerou um ponto fundamental para nossa compreensão atual sobre autonomia dos corpos femininos: as pessoas com útero passam a ter um maior controle sobre quando querem engravidar ou se querem engravidar. Também temos uma maior discussão sobre a emancipação feminina — afinal, antes a função da mulher era ficar em casa, sem trabalhar, cuidando de uma prole enorme (provavelmente você teve uma avó ou bisavó que teve mais de 10 filhos e ela cuidava sozinha de todos eles enquanto o pai era o provedor financeiro).
É preciso entender que, 60 anos depois, ainda estamos engatinhando em algumas discussões sobre esse tema.
Aqui, hoje, a proposta é trazer três (de muitas) discussões que o uso dos métodos contraceptivos precisa passar ainda. Peço licença neste momento para um direcionamento heteronormativo (homem-mulher cis/ homem-mulher trans, sex positive/alossexual), já que a natureza do tema tem a ver com concepção. Mas muitas das discussões aqui pertencem não só as mulheres cis/homens trans, mas da sociedade como um todo, então não deixe de ler só porque isso, de alguma forma, não está diretamente relacionado com a sua sexualidade, ok?
Vamos juntos?
A autonomia da pessoa com útero sobre a escolha e a dificuldade sobre o tema
Um dos pontos mais revolucionários quando falamos do surgimento da pílula e dos demais métodos contraceptivos é a autonomia da pessoa com útero sobre seu corpo. Afinal, agora ela pode decidir quando quer engravidar, se quer engravidar, sem depender de uma posição ativa do homem (colocar a camisinha).
Além disso, pode exercer de forma mais ativa as suas práticas sexuais que envolvam risco de gravidez, não ficando refém mais da concepção do sexo (tal como encaramos normalmente na sociedade) como algo limitado a reprodução: ela pode, se quiser, transar sim, com menos fantasmas de uma gravidez indesejada assombrando sua mente.
Com isso, diversos métodos surgiram: DIU (cobre ou prata), SIU (Kyleena, Mirena, entre outros), diafragma, pilula de hormônios combinados, minpílula de levonorgestrel, implante subdérmico, entre diversas outras opções que permitem não só controlar possível gravidez, mas o como realizar isso da melhor forma.
Porém, a questão mais importante sobre isso é: como podemos falar em liberdade e autonomia se não estamos oferecendo informações e oportunidades para que as pessoas com útero decidam sobre o que vão utilizar em seus próprios corpos?
Começamos com o fato de que a educação sexual ainda é impedida de ser realizada nas escolas. Não se pode conversar com pessoas com útero sobre seus corpos e de que forma cada um dos métodos disponíveis pode interagir com eles. Não se conversa sobre possíveis efeitos colaterais, taxas de eficácia, entre uma série de outros pontos fundamentais para uma escolha ativa e consciente do método.
Eis que, a adolescente ou jovem adulta, inicia sua vida sexual e passa pela primeira consulta com o profissional de saúde (isso quando há uma facilidade para isso, afinal, ainda precisamos considerar a realidade do Sistema Único de Saúde nisso). Relatos diversos na internet mostram que pouco se conversa sobre opções, para que a pessoa com útero possa falar: ok, diante disso tudo, eu prefiro o método X. Normalmente, há uma conversa — na qual muitas ainda relatam não haver perguntas sobre questões importantes, como histórico familiar de câncer de útero, ovário ou mamas, questões ligadas à enxaqueca (com ou sem aura) ou possíveis indicativos de uma trombofilia. Saem dali com uma amostra de cartelinha ou indicativo para retirada dela todo mês no posto de saúde, sem sequer ouvirem falar ou terem sugestão de outros métodos.
Ainda há aquelas que, mesmo conscientes e priorizando escolhas (por exemplo, a decisão de não ter métodos com hormônios sintéticos), encontram barreiras no processo: a burocracia e dificuldade em obter a inserção de DIU na rede pública, a impossibilidade da laqueadura por falta de autorização do parceiro, ou opiniões controversas (e, muitas vezes, preconceituosas) de profissionais de saúde (eu ouvi de uma ginecologista que “não gosto de colocar o Mirena em meninas novas, porque isso ajuda a elas saírem dando por aí e depois vêm aqui desesperadas pra resolver infecções”).
Muitas talvez esbarrem com discussões sobre o tema em redes sociais, de acordo com as suas bolhas. Outras, não tão privilegiadas, ou que estejam em outras bolhas, sequer terão acesso a esse debate. Então, podemos falar mesmo em autonomia?
A OMS, em sua cartilha para elegibilidade dos métodos contraceptivos, afirma que o critério de prioridade para a escolha deverá ser a decisão da pessoa com útero sobre o método, exceto nos casos em que um problema de saúde pode impedir aquela escolha (por exemplo, uma pessoa com enxaqueca com aura, em qualquer idade, não deverá tomar pílulas, pois aumenta o risco de AVC).
Mas estamos mesmo cumprindo isso? De que forma elas podem realmente tomar essa decisão, se não estão conscientes das possibilidades? Liberdade sem conhecimento não é autonomia. Não podemos escolher sobre A, B, C ou D se as cartas não estão na mesa. E isso perpassa muitas questões, como:
- educação sexual na adolescência e conscientização dos métodos contraceptivos;
- dificuldades de acesso a outros métodos que não seja a pílula de métodos combinados (mais barata e, portanto, não onera o sistema);
- dificuldades de que médicos particulares apresentem as opções disponíveis, com taxas de falha e efeitos colaterais, de forma que a pessoa possa definir a escolha;
- poucos espaços fora das redes sociais (no ambiente online geram-se bolhas e, normalmente, não atinge, por exemplo, mulheres que estão em situação de maior vulnerabilidade) nos quais há processos educativos para essas pessoas que não tiveram esse aprendizado antes;
- valores potencialmente altos para alguns métodos (a compra, por exemplo, do DIU de cobre optima TCU 380aA, é, atualmente, aproximadamente R$ 110, fora o procedimento de inserção. Mesmo que o valor compense pelo tempo de duração — 10 anos — , está fora do orçamento imediato de muitos(as) brasileiros(as));
- burocracia e impossibilidade para realização da laqueadura no momento em que a pessoa com útero (segundo o planejamento familiar nacional, só pode ser realizado em pessoas com útero com capacidade civil plena, maiores de 25 anos OU com pelo menos dois filhos vivos. É preciso esperar 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato e, caso seja casada, precisa do consentimento expresso de ambos — ou seja, o corpo passa a ser do “casal” e não mais do “indivíduo”. Além disso, não pode mais ser feito em conjunto com a cesária, para evitar recomendações excessivas sem indicação clínica para isso), entre uma série de outros pontos.
Além disso, precisamos considerar: a autonomia, de fato, existe muito mais para pessoas com útero privilegiadas (os planos de saúde são obrigados a cobrir determinados procedimentos que o SUS não oferece e que são caros, como a inserção do SIU) do que para aquelas que dependam exclusivamente do SUS. Mas, ainda assim, ela é falha para todas as pessoas que possam, eventualmente, vir a engravidar.
A delegação dos métodos contraceptivos apenas para a mulher
Outra provocação e discussão importante a ser levantada é: por que ainda estamos delegando a preocupação com os métodos contraceptivos apenas para mulheres? Para além da minha experiência pessoal, isso fica nítido em duas situações:
- quando pergunto, em um story na página do Instagram do Hacking Sex se há a discussão sobre métodos contraceptivos em eventuais situações casuais e uma minoria de homens responderam que “sim”, enquanto a maioria esmagadora simplesmente ignorou o debate. Desinteresse? Vergonha de falar que “não”?
- quando abre-se essa discussão em grupos grandes no Facebook, de conversas entre mulheres, e a maioria que está em uma relação afetiva diz que os parceiros ignoram essa discussão.
Ou seja, ainda estamos colocando toda a responsabilidade da prevenção sobre a mulher. Mas aí você pode me perguntar: “mas já que a autonomia do corpo pertence a ela, os homens não deveriam se meter, não é mesmo?”. Entenda: uma coisa não invalida a outra.
A decisão do método contraceptivo pertence à pessoa com útero. Afinal, os efeitos hormonais recaem sobre aquele corpo específico e nenhum outro. O aumento do fluxo menstrual e de cólicas pertence apenas àquela pessoa e nenhuma outra. Essa decisão é a autonomia sobre o próprio corpo: se as consequências do método recaem sobre mim, é meu direito escolher o que eu estou disposta a passar ou não.
Contudo, a responsabilidade sobre contracepção é de ambos. Até hoje só há o relato de um ser que nasceu de uma concepção “unilateral” e foi o mesmo que transformou água em vinho, fez alguns milagres, então não dá para colocar na conta de que é possível isso na nossa realidade material, não é mesmo?
Ou seja, para que uma gravidez aconteça, um ser com pênis e um ser com útero entraram em relação com penetração. Sem a participação de ambos, ela não aconteceria. Logo, responsabilidade compartilhada.
O que isso quer dizer? É papel da parte com pênis também estar atento a isso.
Definindo qual o tipo de método?
Não.
Mas estando consciente, estudando sobre o tema, identificando taxas de falha em uso perfeito ou típico (quando algo interfere na eficácia do método escolhido) e entendendo que, em caso de gravidez não planejada, você tem responsabilidade sobre aquilo.
E caso queira minimizar ao máximo, aceitar o uso dos métodos de barreira (as taxas de eficácia na contracepção aumentam no uso de métodos de barreira e demais métodos), e não ficar na pilha do “ah, mas você usa DIU, vamos fazer no pelo, que problema tem?”, não é mesmo homem cis?
E lembre-se: isso não vale apenas para os relacionamentos em si. Se há risco de gravidez, pode ser aquela “transa de balada”, você tem que assumir essa responsabilidade sim. “Ah, mas é um assunto muito sério para tratar com quem nunca mais vou ver”. Olha, te contar um segredo, pode ser que vocês sejam sorteados na taxa de falha do uso perfeito e você vá ter contato com essa pessoa pro resto da sua vida sim, então… É melhor a conversa, não é?
A discussão vai muito além da mera questão de contracepção
Falar sobre contracepção não é só sobre isso — e, por isso, não pode ser um assunto restrito para pessoas com útero e possibilidades de gravidez.
Talvez o exemplo mais claro disso seja esse post. Nesse relato visceral de uma mulher desesperada para tomar a injeção anticoncepcional, com medo de vir a engravidar do sexto filho, vem um questionamento final fundamental: até que ponto essas discussões chegam a parte mais fragilizada e, consequentemente, aquela que mais sofre com os pontos anteriores? Falar com nossas bolhas (e aqui eu me incluo, pois quem está aqui, provavelmente, é, em sua maioria, quem tem maior autonomia de escolha) é fácil. Mas como promover mudanças reais que atinjam essas mulheres presas em situações abusivas, por N motivos (incluindo, entre eles, não poder ter uma rede de apoio e depender financeiramente de um marido abusivo, com outras 5 crianças para cuidar, sozinha?)?
Como pessoas em maior situação de vulnerabilidade podem pedir uma segunda opinião quando há a presença de um efeito colateral grave? Se na rede privada já temos médicos que negligenciam essas questões e mandam elas de volta para casa, mesmo quando há sintomas claros de potenciais problemas trombofílicos, imagina quem não tem o direito de escolha a uma segunda opinião?
Os métodos contraceptivos trouxeram uma revolução sexual? Sim. Mas ainda há uma série de revoluções a serem feitas:
- é preciso garantir o direito à informação no ato da escolha do método. É muito fácil mandar “ler a bula” depois que ela já adotou determinada medida. Mas e antes? E para a escolha? Como fica?
- é sobre a escuta ativa sobre o histórico da paciente. Nem todo mundo vai saber falar sobre “enxaqueca com aura”, então uma “dor de cabeça forte” om “não tava conseguindo ver direito de tanta dor” precisa ter atenção sim. Ouvir sobre histórico de tumor hormonodependente precisa ser ouvido sim. É preciso humanizar o atendimento, pois, infelizmente, ainda há muitos profissionais que não entenderam isso ainda.
- é preciso que os médicos não imponham seus preconceitos na sua vida profissional. Lembro-me na minha primeira consulta com uma nova ginecologista (já tinha colocado o Mirena, um método semelhante com o DIU, com liberação de hormônio local) e o posicionamento foi: “ah, ela colocou porque você estava em um relacionamento longo, né? Eu acho péssimo colocar o Mirena em menininha novinha solteira, porque elas saem dando por aí e depois quem tem que resolver sou eu”. É. Pois é.
- é sobre poder oferecer mais opções e menos burocracia do que a pílula e camisinha (por custarem menos) para as pessoas com útero periféricas e que desejam opções por outros métodos.
- é sobre discutirmos porque ainda precisamos do aval do cônjuge ao decidir por uma laqueadura, sendo que o corpo é “nosso” e não “do casal”.
- é sobre colocar na mesa que as pessoas com pênis (principalmente homens cis) têm responsabilidade sim e precisam parar de delegar os cuidados contraceptivos apenas às pessoas com úteros (principalmente mulheres cis em situação de relações abusivas).
- é sobre porque muitas pessoas de meios de “contracultura sexual” (fetichistas/BDSMers, por exemplo) se calam quanto a isso ao invés de colocarem a mão na consciência e admitirem que estão sim delegando esse tipo de cuidado apenas à pessoa com útero, sendo que, por histórico de construção desses ambientes, o feminismo permeia sua história e, portanto, muito me espanta o silêncio de muitos sobre isso.
- é sobre extrapolar bolhas, sobre contato frente a frente, sobre conversas sinceras, sobre ouvir essas pessoas mais vulneráveis e entender o que elas precisam sobre contracepção.
- é sobre porque pessoas com útero em gravidez indesejada ainda são vistas como as únicas responsáveis pelo ocorrido, ignorando o fato de que é preciso um gameta XY para concepção também.
- é sobre autonomia, sobre direito, sobre efetiva liberdade. Nós avançamos, mais ainda estamos muito longe disso.
São longos os debates, são muitas as provocações e discussões. Trouxe alguns pontos ainda iniciais. Isso vai longe. É complexo. Mas se entendemos como partir, podemos avançar e acolher pessoas fora das nossas bolhas. Isso precisa chegar a quem está fora disso. Então se você puder acolher uma pessoa vulnerável, conversar com ela, educar, oferecer opções, já é um começo. E, também, para quem se distancia do processo por não ser o ser que engravida, ponha a mão na consciência. Isso é tão sobre vocês também. Deixem de fugir disso sobre falsos pretextos.