“Follow me”: reflexões sobre autonomia, conhecimento e crenças
Esse é o primeiro de uma série de 3 artigos reflexivos sobre as atuais discussões que estão acontecendo após uma denúncia de abuso em uma relação Ds no meio BDSMer. Contudo, mesmo que você sequer se interesse pelo tema, é plenamente possível estender as questões levantadas nos três textos para as mais diferentes áreas da sua vida, não só sobre (a)sexualidade(s). Convido você então, neste momento, a entrar nessa toca, se quiser. A porta está aberta e você deverá entrar, conhecer e sair de forma autônoma. Muitas questões estarão sem respostas, justamente, porque você deve ter autonomia neste processo. Afinal, abrimos essa série, justamente, com a questão sobre “seguir”.
No último artigo que produzi para a pós, lembro que li dois textos distintos, mas que se complementam nessas questões, sobre como os botões de ações nas redes sociais são sempre positivas e as vezes nos fazem esquecer de que a realidade tem muitas nuances.
Nós “seguimos”. “Compartilhamos”. “Curtimos”. “Amamos”. “Combinamos” (match). Muito raramente “bloqueamos” ou “deixamos de seguir”. São ações via de regra que representam emoções (curtir outra pessoa ou outro conteúdo/amar outro perfil, persona ou conteúdo) ou ações em relação a terceiros (seguir outra pessoa, compartilhar algo de uma pessoa com outros, combinar com outra pessoa), que realizamos de forma mecânica, automatizada, impulsiva, porque o imediatismo trazido na arquitetura das plataformas e sites de redes sociais nos conduz a isso.
Diante dos fatos recentes (que vão para além do meio BDSMer, obviamente) e essa reflexão feita nesse último quadrimestre, queria compartilhar o que tenho pensado sobre a questão do “seguir”. Principalmente quando estamos falando sobre produtores de conteúdo e formação do nosso conhecimento sobre determinada área.
Em português, “seguir” poder ter o significado de:
- ir atrás de alguém ou algo,
- escoltar;
- ser orientado, guiado ou dirigido por;
- tornar como modelo.
Temos outras definições, claro, mas se pensarmos, também, que nossa língua é polissêmica, vamos precisar ir até o original, no inglês, para entendermos de onde veio isso. No caso, o termo é “follow”, que tem o sentido de:
- mover-se atrás de alguém ou algo e ir onde ele/ela/isso for;
- ir na mesma direção em uma estrada;
- fazer o mesmo que outra pessoa faz;
- obedecer ou agir segundo as ordens de uma pessoa.
Quando olhamos dessa forma, percebemos que temos uma certa hierarquia, não é mesmo? Estamos “atrás de alguém”, “seguindo seus passos”, nos “orientando pelo seu trajeto”. Por aqui já podemos pensar: quem estamos escolhendo para nos conduzir em determinados caminhos?
Essa reflexão aqui se faz necessária, principalmente, em ambientes nos quais somos convidados sempre a opinar, gerar conteúdo e conhecimento sobre algo. Você vê isso na política, por exemplo. Você vê isso sobre economia. E sobre BDSM não é diferente. O que está acontecendo no meio agora é justamente isso: aqueles que seguimos estão nos conduzindo com suas reflexões sobre a denúncia de abuso.
E, ironicamente, a pessoa que está sendo denunciada se propôs a produtor de conteúdo, a se posicionar como pesquisador acadêmico(isso a gente conversa na parte 3), ou seja, a um papel de autoridade e liderança. E o que vemos aqui é o conflito de liderados vendo sua liderança sendo confrontada e fazendo uma das atribuições para a palavra “seguir”: escoltar, defender. Formam-se fileiras de proteção de quem receberá e amortecerá os danos direcionados para a liderança, que, inclusive, sequer negou qualquer um dos fatos trazidos pela vítima em seu relato.
A liderança não precisa pedir por isso. Porque ao decidir “seguir”, neste conceito, você está se posicionando no papel de protetor e de acompanhar a liderança onde quer que ela for, mesmo que você não saiba bem para onde ela está te levando. Afinal, entre discursos e práticas, temos uma série de nuances presentes aqui e que, muitas vezes, não são necessariamente o mesmo destino.
Assim, minha segunda questão é: quando seguimos desta forma, até que ponto não estamos delegando nossa capacidade de definir nossos próprios trajetos, dentro do que acreditamos, para alguém que nos conduz e, novamente, não sabemos necessariamente para qual caminho nos leva?
Porque, no fundo, eu acredito em uma pedagogia da autonomia. Em que as pessoas possam encontrar seus caminhos sem precisar seguir um mestre, um guru, uma liderança. O educando deve ter autonomia para sair da mera assimilação (seja do conteúdo ou do discurso), para um papel de protagonismo. Em outras palavras, você não deve apenas seguir o Coelho para dentro da Toca só porque ele está indo para algum lugar, mas ter a capacidade de analisar os diversos trajetos, entrar e sair de cada um deles e criar o seu próprio, diante do seu aprendizado. Isso é seu, e não está refém de qualquer autoridade que se proclame assim.
Ou seja, para que a pessoa possa sair da condição de mero “seguidor”, é preciso entender que “ensinar não é transferir conhecimento” e se você assimila que apenas uma fonte genuína é detentora de determinadas informações e que você precisa deixar que ela te conduza nesse processo educacional, isso não é educação, isso é subordinação e, com o perdão, novamente, da ironia, isso não cabe no processo de aprendizagem de modo geral, incluindo no BDSM.
A posição de subordinação com a soma da personalização e centralização do produtor de conhecimento gera, justamente, esse processo de subordinação a liderança, de forma que você age acriticamente em defesa daquela pessoa, sem considerar que conhecimento e ética não necessariamente andam lado a lado. Não vou entrar no mérito, neste momento, sobre a validade deste conhecimento ou não, mas uma pessoa pode ter um vasto conhecimento sobre determinado tema e ainda assim agir de forma diferente ao que passa aos demais. Eu não preciso, por exemplo, ser liberal, para dar aula sobre liberalismo. Uma pessoa pode falar de ética e contrariar aquilo que ensina sim (obviamente que a dissonância entre o que bate no peito e o que coloca em prática também precisa ser analisado, claro).
Via de regra vemos pessoas denunciadas pelos mais diferentes crimes em que o questionamento de pessoas próximas é: “mas nossa, com a gente a pessoa era tão boa, jamais acreditaria”. É porque você teve acesso a uma das diversas nuances da pessoa. Um aprendizado que jamais esquecerei é que nós nunca temos acesso a totalidade de um “objeto dinâmico” (coisas da semiótica peirceana, calma que vou traduzir), mas sim temos acesso a ele mediado por signos.
Nós nunca temos acesso a totalidade (e aqui em muitas nuances) de qualquer ser humano. Nós temos acesso àquilo que chega até nós pelos diversos signos que elas passam para nós: suas ações, suas falas, suas projeções de personas, por contradições entre discurso e práxis, ou pelo alinhamento de fala e ação, entre tantos outros. E essa imagem que nos é formada por meio do acesso a esse “objeto dinâmico” (pessoas) pelos signos é dinâmico. A cada aprendizado, a cada novo contato, a cada segundo isso pode (e deve) mudar.
Dentro dessa mesma linha “teórica”, vou continuar resgatando Peirce. Nós tendemos a “fixar” nossas crenças. Nós “amamos amar nossas crenças”, porque o custo de revermos tudo aquilo que nós construímos por dias, meses, anos, é alto. É por isso que nos custa tão caro quando um paradigma científico inteiro cai por terra. Porque investimos muito ali (dinheiro, projeção, expectativas, afetos, entre outros). E como Peirce já dizia, ali em 1877, somos animais lógicos, mas não o somos perfeitamente. Muitas vezes somos mais “sanguíneos e esperançosos do que a lógica justificaria”. Mesmo que os fatos e a lógica se interponham diante dos nossos olhos, quando nossas esperanças e aspirações são confrontados pela lógica, nos tendemos a negar. Converse com qualquer pesquisador sobre os efeitos de uma hipótese de pesquisa negada e você vai entender o que eu estou falando. Nem precisamos ir tão longe. Quando você espera por algo, construiu um raciocínio e um afeto sobre aquilo e a realidade se impõe, o que acontece? Sabe esse sentimento? Pois é. É o custo de vermos nossas crenças chocadas.
Tem um trecho, desse mesmo texto, que eu acho interessante aqui.
“Sabemos geralmente quando queremos perguntar uma questão ou pronunciar um julgamento, pois existe uma dissemelhança entre a sensação de duvidar e acreditar […] As nossas crenças guiam nossos desejos e moldam as nossas ações. […] O sentimento de crença é uma indicação mais ou menos segura de se encontrar estabelecido na nossa natureza algum hábito que determinará as nossas ações. A dúvida nunca tem tal efeito. […]. A dúvida é um estado de desconforto e insatisfaço do qual lutamos para nos libertar e passar ao estado de crença; enquanto este último é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar, ou alterar por uma crença noutra coisa qualquer. […] Assim, tanto a dúvida como a crença têm efeitos positivos sobe nós, embora muito diferentes”.
E quando seguimos alguém nas redes sociais, vemos uma persona que cada um projeta para ser desejado, admirado, seguido, enfim. Nosso custo emocional, de confiança, de termos delegado essa jornada é muito alto. Contudo, isso não pode ser justificativa para, diante disso, nos mantermos em posições passivas e renegar tudo aquilo que confronta nossas certezas anteriores.
Seguir é delegar nossas crenças para terceiros e nos sentirmos confortáveis de deixarmos a condução do nosso caminho para outra pessoa. É confortável, é seguro, nos dá sensação de confiança. Mas quando esse seguir é cego, nos tira a autonomia de descer do barco quando vemos que ele está indo para mares revoltos e não confiáveis. Acreditamos que o condutor vai dar conta, mesmo que estejamos vendo que aquilo vai dar um acidente e vamos nos afogar. Colocamos a nossa própria percepção em xeque pelo processo cego de seguir uma liderança, um mestre, um guru. Isso é a coisa mais antipedagógica existente.
E aqui não digo que as pessoas que, de alguma forma, acreditaram em algum momento e, ao verem suas crenças defrontadas, tomaram outros rumos, tenham culpa sobre isso. Afinal, a dúvida se mostra quando temos arcabouço de conhecimento para tal. Você não consegue questionar se determinado caminho é melhor ou pior até que você saiba que ele exista, ou que conheça os problemas dos rumos A ou B.
Mas para aquelas que, tendo suas crenças defrontadas, não deem o benefício da dúvida, eu convido a refletirem: você está, de fato, analisando fatos ou está com medo de que sua crença sobre alguém que está gerenciando seu caminho seja abalada?
Você pensa que esse é o trajeto mesmo de aprendizagem, no qual um terceiro, personalizado, deve ser aquele que está sempre a frente de ti? Ou é possível colocar-se em posição de autonomia e protagonismo da sua aprendizagem?
Mais uma vez, como na introdução deste texto, eu espero que essas inquietações levem você para outros trajetos e caminhos, com você nesse volante, a frente, e não seguindo alguém.