Fetiche — culpa, coerção social, disciplina social, puritanismo. E prazer, no final das contas

Hacking Sex
7 min readMay 21, 2021

--

Foto por Deon Black em Unsplash

Primeiro dia da “sexta fetichista” por aqui. Eu pensei em tantas práticas que poderia incluir aqui, mas no fundo… Precisamos abrir esse sex.tou com uma discussão importante: por que fetiches mexem tanto com a gente? Isso tem motivo. Tem construção histórica. Tem razão de ser. E toda essa sensação de incômodo e culpa tem motivo também. Isso antecede, até mesmo, o nascimento de todos nós que estamos aqui.

E é estranho pensar que existiu um mundo no qual essas questões não eram tabu. Mas existiu. Acredite.

Seja você uma pessoa que se considere fetichista ou não, curiosa ou não, é importante entender o que está por trás disso: por que vemos

O que é o fetiche?

Foto por Bianca Berg em Unsplash

A palavra fetiche foi usada pela primeira vez em 1756, utilizada pelo escritor francês Charles de Brosses. Ela deriva da palavra fetisso, e que com as mudanças da língua, gerou a palavra “feitiço”. O termo surgiu para falar sobre os cultos africanos que o escritor francês estava analisando.

(mais detalhes históricos sobre o nascimento do termo e sobre fetichismo, você encontra no livro “Fetichismo: colonizar o outro”, de Vladimir Safatle)

Como a língua é viva e as palavras mudam suas conotações, sendo aplicadas de outras formas ao longo do tempo, fetiche chegou, posteriormente, ao campo filosófico-político (com um dos expoentes mais conhecidos por meio do conceito de “fetichismo da mercadoria” em Marx) e na psicanálise (com o exemplo mais expoente, por meio de Freud).

E é a partir deste último que o termo fetiche é vinculado à perversão. Na verdade, a ideia de “parafilia” (ou seja, de gostos “paralelos” aos normais e, portanto, patológicos), surge com o Psychopathia Sexualis, obra de Richard Krafft-Ebing.

Para além das questões históricas (que você pode conferir na obra do Safatle e, também, no História da Sexualidade I, de Michel Foucault), é importante entender o que está em jogo aqui. Ao longo da história, diversos foram os mecanismos que foram absorvidos pelo Poder (e aqui entenda: ele vai para além do Estado, que é uma das estruturas de poder, mas não a única responsável por isso) para controle dos corpos ao longo da história.

E a sexualidade é um dos campos mais férteis para subjulgar, disciplinar e controlar pessoas. Afinal, ela está diretamente ligada com questões que nos são muito íntimas, formadoras de subjetividades. Pense em como você se define hoje. De alguma forma, passará pelo campo das (a)sexualidade(s). Não é mesmo?

Por que o fetiche tem essa “aura” de “fascínio” e “horror”?

Foto por COSMOPOLITANO MODEL em Unsplash

Muitas pessoas se encontram, muitas vezes, em um lugar de questionar-se se está tudo bem ter seus fetiches. Quando eles se deslocam daqueles que são “mais populares”, ainda tem um reforço muito maior.

Afinal, BDSM, por exemplo, ficou famoso com “50 Tons de Cinza”. Ainda que ocorra uma visão preconceituosa ainda por parte da sociedade, mas a mercantilização do meio, devido ao sucesso da franquia, tornou mais “higienizado” e “palatável”, em alguma medida (ainda que não seja 100% assim, e ainda que este processo não seja novo, sabemos disso. É uma intensificação disso). Enquanto isso, outros fetiches menos “pop” recebem olhares ainda mais de estranhamento, como:

  • SPH (Small Penis Humilliation, ou seja, a pessoa com pênis é humilhada pelo tamanho dele);
  • Alguns pormenores da podolatria (como o interesse por meias e sapatos usados);
  • Trampling (pisar, pisotear a outra pessoa);
  • Pet play, kitten play, pony play;
  • Macrofilia (fantasia de tamanhos discrepantes entre os parceiros. Por exemplo, um homem que fantasie com uma mulher de 15m);
  • “Wet and messy” (fetiche por situações em que há presença de líquidos viscosos na cena), entre outros.

A grande questão é: independentemente se o seu fetiche é mais bem-visto ou se ele sofre kinkshaming (quando uma pessoa é inferiorizada pelas suas preferências sexuais “não-tradicionais”), fato é: isso é encarado como um “desvio” de uma sexualidade (e práticas sexuais) considerada normal. Afinal, não é a toa o surgimento do conceito de “parafilia” (amor/apego a algo paralelo), ou seja, que está “fora do que é aceito”.

Um exemplo: a heterossexualidade é o “normal”, o “aceito”, o “biologicamente correto”. E o que vem em paralelo são os homossexuais, bissexuais, assexuais e afins. E isso se repete ao longo de todas as questões sobre sexualidade: o sexo para reprodução é o “aceito”. Aquilo que serve puramente ao prazer, é o “anormal”.

E isso tem mais de um século de história. Com o agravante: com o uso inadequado da biologia, foi criado uma narrativa de que a ciência fala que isso é o certo, e os “desviantes” são os errados. Sabe quando isso ocorreu também na história? Quando a ciência foi usurpada para reforçar o racismo.

Entender isso faz com que possamos entender: não é meu fetiche que está errado. Não tem nada de anormal, loucura ou perversão em sentir prazer por apanhar/bater, beijar pés, ser pisado, ter fantasias com pessoas gigantes — desde que tudo seja consensual (de forma ativa, ou seja, sem coerção e que o “não” seja possível) e saudável para todos os envolvidos naquilo, de forma direta ou indireta.

É claro que precisamos não ser levianos em relação a isso. “Tá tudo bem com os meus fetiches?”, bom, depende. É o que vamos ver a seguir.

Tá tudo bem com os meus fetiches?

Foto porFerdinand studio emUnsplash

É muito comum que muitas pessoas se questionem, portanto: “mas meus fetiches são ‘normais’?”. Primeiro lugar, buscar “normalidade” talvez não seja o melhor ponto. Isso porque “normalidade” é convenção social, e muitas vezes vem demasiadamente permeada pela moral (consequentemente, a nossa moralidade judaico-cristã, repleta de culpa).

Qual deve ser o foco então? Existe uma tríade de conceitos, que permeiam o BDSM e que podem ser adotados para analisarmos essas questões.

Lembrando que aqui é uma sugestão pessoal de autoria da página, não sendo determinada por conceitos da psicologia/psiquiatria para este fim. É apenas um convite para reflexão.

  • meu fetiche é são, ou seja, as relações estabelecidas durante as práticas ocorrem de forma a trazer uma experiência sã para todos os envolvidos, em todos os aspectos da vida?
  • meu fetiche é seguro? Aí você pode me perguntar: “ah, mas o que é 100% seguro na vida?”, ok. Nada. Mas você tá minimizando os riscos decorrentes para todos os envolvidos durante as práticas?
  • meu fetiche é consensual? Lembrando que a consensualidade precisa ser ativa e passível de poder ser retirada em todos os momentos da prática daquele fetiche.

Ok, mas há outros parâmetros? Sim. Há, atualmente, um entendimento por parte dos profissionais de saúde mental, presentes no DSM-5 e no CID-11, que pode ser uma outra diretriz para entendermos sobre nossos fetiches. É considerado um transtorno (e, portanto, passível de tratamento) as práticas nas quais:

  • gere sofrimento intenso e persistente para o paciente, comprovado em 6 meses de clínica;
  • causam sofrimento significativo ou comprometimento do funcionamento social, ocupacional ou de outras áreas importantes ou causam danos ou têm potencial de machucar outros (por exemplo, crianças e adultos que estejam em condições incapazes de consentir ativamente).

Aí podemos entender: não está tudo bem, por exemplo, a pedofilia, por um motivo simples: é um crime, no qual há uma prática sobre uma pessoa incapaz de consentir. Uma criança não tem maturidade cognitiva para que possa gerar consentimento ativo sobre práticas sexuais. Abusar de uma pessoa sob efeitos alcoólicos é um crime e um problema, porque há uma ação sobre uma pessoa que não está, naquele momento, capaz, para definir um consentimento ativo.

Nos casos em que há um transtorno, o tratamento é importante para conscientização e redução do sofrimento significativo e comprometimento do funcionamento social. E aí você pode me perguntar:

— mas afinal, a origem do sofrimento é do transtorno em si ou, então, do medo do julgamento social?

Então, depende. E por isso o processo de terapia é fundamental. Ela dará as ferramentas para que você, de forma autônoma, identifique essas questões.

Seria muito fácil falar “se seus fetiches não compromete a sua integridade e de terceiros, tá tudo bem, não sinta culpa”. Mas essa é, constantemente, uma fala leviana.

Culpa é uma questão complexa e multifatorial. Envolve a moral sob a qual nossa sociedade se constrói. Envolve nossa formação de vida. Situações as quais fomos reprimidos e a forma como construímos, ao longo da vida, para lidar com as repressões. Envolve nossas personalidades. Enfim, uma série de questões. Então, também não se sinta culpado por sentir culpa, ok? rs Isso é processo. E como todo processo, ele demanda tempo. Demanda cuidado. Atenção. E, principalmente, não é linear.

Essa é uma pequena introdução para começarmos nossa coluna semanal, às sextas-feiras, sobre fetiche. Deixe suas questões no Instagram, no Curious Cat, no Twitter e vamos seguindo o baile! :)

--

--

Hacking Sex
Hacking Sex

Written by Hacking Sex

Um espaço para dialogar e desconstruir tabus sobre a sexualidade, aproveitando brechas de vulnerabilidade e fortalecendo esse tema por meio do coletivo.

No responses yet