A relação entre (a)sexualidade(s) e saúde mental
“Ser o que se é, é um ato revolucionário”
Setembro amarelo está aí e é o momento no qual saúde mental entra em voga — uma discussão que deveria ultrapassar as bandeiras “mensais” e ser discutido todo fucking dia. A depressão, segundo a OMS, será a doença mais comum em todo o mundo até 2030. Segundo a mesma instituição, ocorre um suicídio a cada 40 segundos no mundo. Ou seja, até o final desta leitura (estimada em 10 minutos), pelo menos 15 pessoas terão morrido por conta desse problema.
Ainda, saúde mental é considerada um forte tabu; terapia é vista como “ambiente para gente doida/perturbada/doente”; acesso a tratamentos ainda é dificultado, seja pelo preço, seja pela burocracia para liberação no sistema público; falar sobre seus sentimentos e angústias ainda é visto como fraqueza — ainda mais na sociedade do selfie, na qual você precisa mostrar sempre a sua melhor versão todo o tempo, mesmo que não esteja bem (eu mesma caço meus cookies até hoje nos meus piores momentos)… Falar sobre isso é necessário todo o tempo, para que possamos ter uma sociedade mais saudável para sermos quem somos, e termos acolhimento externo e autoconhecimento interno sobre o que se passa conosco.
E se é tabu, ao unir saúde mental e sexualidade, estamos entrando em uma seara ainda mais delicada. Certezas sobre o tema, não é possível dizer. Mas hoje trago nessa discussão três provocações para pensarmos juntos sobre essa junção.
Vamos juntos?
A patologização da sexualidade
É estranho pensar, hoje, que nem sempre a sexualidade foi analisada pelas ciências (medicina, biologia, psicologia, psicanálise). Esse insight me veio quando passei a ler o História da Sexualidade 1: a Vontade de Saber, de Michel Foucault. Nessa obra, publicada originalmente em três volumes, o filósofo e historiador das ideias faz um longo percurso sobre como a sexualidade foi construída, e nesse primeiro volume ele entra justamente nesse ponto: a inserção da sexualidade nesses campos foi um instrumento de poder (aqui não é uma figura ou instituição específica, como o Estado). Acrescenta-se aqui mais um item “modificador” da sexualidade: a moral ganharia como aliada a racionalidade como forma de criar um “modo de exercer sua sexualidade” e os comportamentos desviantes seriam uma patologia.
E foi a partir daí que passou-se a analisar a sexualidade como passível de patologização. Fetichismo, homossexualidade, transsexualidade, sadomasoquismo, parafilias, todas entraram no DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders — Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que orienta as práticas dos profissionais de saúde quanto a tratamentos para desordens mentais.
É também a partir disso que o sexo ganha uma maior força de ser observado sobre a lógica reprodutiva. Não é uma proibição ou uma coerção, mas o discurso racional gera uma lógica controversa, que escutamos até hoje: há um “modo saudável de sexualidade” — normalmente heteronormativo, “baunilha”, padrão, convencional, focado na estrutura monogâmica do casal com foco em gerar filhos, e as demais são consideradas “sexualidades periféricas”, “desviantes”.
Entende porque ficou fácil legitimar a homossexualidade, a transsexualidade, as parafilias, fetichismo, entre outros, como “coisa de gente doente”?
Foucault ainda traz um outro ponto interessante para pensarmos: no oriente temos o conceito de Ars Erotica, ou seja, uma arte erótica, enquanto no ocidente, nós trabalhamos com uma Scientia Sexualis. Como o autor fala:
(sobre a Ars Erotica)“[…] a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência.; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em consideração, mas ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como prazer, e portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma” (p. 57)
(sobre a Scientia Sexualis) “No ponto de intersecção entre uma técnica de confissão e uma discursividade científica, lá onde foi preciso encontrar entre elas alguns mecanismos de ajustamento (…), a sexualidade foi definida como sendo, ‘por natureza’, um domínio penetrável por processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções terapêuticas ou de normalização” (p.67)
Entenda: isso não significa criticar a “racionalidade” ou a ciência, ou falar que a sexualidade não deveria ser passada por essas questões, mas entender como algumas sexualidades passaram a se transformar em patologias e, também, como nós tornamos a sexualidade um campo extremamente hard, atribuindo-lhe a dureza e a frieza da racionalidade.
Assim, não é difícil imaginar porque movimentos de contracultura e resistência trouxeram consigo muito do apelo artístico e estético em suas formas de vivenciar a sexualidade, movimentos e manifestos (como o BDSM, queer, movimento LGBTQIA+, entre outros). Afinal, eles trazem em sua essência uma espécie de “fuga” desse sexo condicionado à reprodução, extremamente analisado, burocratizado e protocolado.
Caminhamos muito, a duras penas, para melhorias nesse quesito. Podemos mencionar, por exemplo:
- a retirada da homossexualidade como doença mental do DSM-2 em 1973 e apenas em 1990 ela é retirada do CID-10 pela OMS. Foi um grande marco, de forma que o dia da retirada, 17 de maio tornou-se o Dia Internacional Contra a Homofobia;
- a retirada da transsexualidade como doença mental, com a publicação do DSM-5, em 2012, e sua futura retirada, na publicação do CID-11 (Classificação Internacional de Doenças), anunciada em 2018 (mantém-se ainda, a disforia de gênero como desordem mental, ou seja, quando a pessoa sofre por não se identificar com seu sexo biológico);
- a passagem do fetichismo para o transtorno fetichista (ou seja, é considerado passível de tratamento apenas quando a questão traz problemas na vida pessoal do paciente, ou quando ele passa por grande sofrimento, comprovado por relato clínico ao longo de 6 meses) na revisão para o DSM-5. Da mesma forma ocorrida com a transsexualidade, na revisão para o CID-11, a OMS fará a retirada do Fetichismo, Travestimo Fetichista e Sadomasoquismo, na qual não é considerada patologia, desde que em suas práticas se preze pela consensualidade entre todos os envolvidos;
- o CID-11 irá distinguir, pela primeira vez, as práticas de BDSM de violência;
- as parafilias de modo geral não são consideradas mais patologias, exceto se causarem danos e sofrimento ao indivíduo ou se não forem praticadas de forma consensual entre todos os envolvidos — nesse caso, é considerado como Transtorno Parafílico, também ocorrida na revisão do DSM-5.
Ou seja, as primeiras mudanças começaram a acontecer apenas há quase 50 anos. Ainda precisamos caminhar — e muito — nessas discussões.
O exercício da sexualidade e saúde mental
Bom, esse é o gancho para a segunda “provocação”: se, por essa visão anterior, nossa(s) (a)sexualidade(s) são uma doença e, ao mesmo tempo, nossa identidade, seríamos, portanto, seres irremediavelmente doentes, perversos e não deveríamos estar em meio social.
Não raro, assim, criam-se personas e máscaras sociais para sermos bem-aceitos e evitarmos agressões tanto na esfera física quanto mental. Com isso, acabamos criando um espaço seguro para “sermos quem queremos ser” em outros ambientes, ao lado dos nossos pares (sejam parceiros de fato, seja redes de apoio, amigos, entre outros) ou, ainda, há quem vista a “máscara 24/7”, por diversos motivos, fadado a estar preso em um ser que não é de fato — e é extremamente cansativo, em todas as esferas, ser o que não é, acredite.
Com o tempo, a identidade vai se diluindo e você perde essa conexão consigo mesmo. Não raro, daí vem os quadros de dissociação, depressão, ansiedade, pânico, somando-se a isso, claro, todos os medos de violências existentes em sociedades ainda extremamente conservadoras e moralistas para aceitar que tá tudo bem as pessoas amarem, se atraírem e se identificarem como quiserem, exercerem sua sexualidade (com consensualidade e ética) como quiserem e, principalmente, respeitarem e serem empáticos com o outro.
Infelizmente, não raro, as minorias são mais vulneráveis a condições de transtornos mentais graves (ansiedade e depressão em suas formas severas, bem como síndrome do pânico). Jovens LGBTQIA+ pensam três vezes mais em suicídio que cis heterossexuais e têm cinco vezes mais chances de eventualmente chegar a tentar o fato, segundo pesquisa.
Não poder ser quem somos, sob a égide de sermos “doentes mentais irreversíveis perigosos para a sociedade”, em uma visão preconceituosa e retrógrada, tristemente e ironicamente, nos leva a, justamente, quadros patológicos reais. Precisamos falar sobre isso, precisamos acolher, entender, criar uma sociedade segura para que essas pessoas possam, de fato, apenas serem o que são, sem que isso tenha que ser uma resistência constante. É preciso lutar para que as ditas “sexualidades desviantes” não precisem ser resistência. Enquanto se discutir uma “sexualidade natural e racional”, normatizada e padronizada, será necessário introduzir um agente reativo, constantemente em luta. E ter que guerrear todo dia para poder simplesmente ser você mesmo mostra que ainda estamos fracassando como sociedade.
Nossos gostos, desejos, fetiches, identidades de gênero, nossa contraposição à monogamia, nossa forma de sentir e atrair não é tudo que nos define, mas fato é: são parte essencial do que realmente somos. E viver sempre levantando máscaras nos adoece dia após dia.
Discussões sobre falta de libido, assexualidade e saúde mental
“Sexo é vida, sexo é saúde”. Talvez você tenha ouvido isso muitas vezes e tenha tomado isso como uma verdade, não é? Afinal, se sexo é vida, a ausência dele seria morte? Se sexo é saúde, a falta de vontade por ele seria sinal de algum problema ou patologia?
A questão é: não. Ou, bom, não nas nossas concepções de “sexo”, ainda muito ligadas à reprodução e genitalização das práticas, algo que você mesmo que está lendo deve ter isso, mas sem perceber.
Quer ver um exemplo? Isso fica muito claro, por exemplo, quando “sexo oral” ainda é visto como preliminar, ou quando práticas que não envolvam contatos genitais não sejam vistos como atos sexuais de fato, mesmo que despertem tesão/libido/gozo/orgasmo.
Diante disso, a falta de anseio por um sexo, tal como concebemos socialmente, é visto como uma patologia e, portanto é preciso buscar formas de resolver a questão. Quando você fala sobre isso com amigos e colega, é normal ouvir falas como (e muitas delas, até mesmo, problemáticas):
- é problema hormonal;
- é estresse;
- é depressão;
- culpa de não dormir bem;
- você tem pensado em sexo?
- você precisa transar pra voltar a ter desejo, faz uma forcinha e vai assim mesmo;
- fez exame com endócrino? Psiquiatra?
- ih, culpa é do seu parceiro(a) hein, dá aquela puladinha de cerca, você vai ver que melhora.
Reparou que falta uma questão nessa lista ? Você pode ser assexual e tá tudo ok com isso. É claro que, se você é sex positive/alossexual (ou seja, sua sexualidade está relacionada tem desejo de ter relações sexuais, tal como convencionado socialmente, com outras pessoas) e tem uma mudança brusca, é importante analisar o que pode estar acontecendo. Mas, muitas vezes, é uma diminuição de frequência sexual normal ou, então, você pode ser ace (assexual, ou seja, não sente desejo por relações sexuais) e não é uma patologia ou problema: é sua sexualidade.
Os assexuais não são pessoas sem libido, que fique bem claro. Só que essa pulsão sexual é canalizada para outras áreas, que não o sexo tal como concebemos, ou para as relações românticas (há quem seja ace romântico, que fique claro).
Eu me lembro que a questão do direcionamento da libido ficou muito claro para mim quando uma amiga querida me contou que teve um orgasmo saltando de bungge jump. Relatos como esses não são raros e mostram que muitas coisas podem despertar a sua libido e que vão além do toque de genitálias (e ainda bem, não é mesmo?). Eu já passei por situações como essa e imagino que muitos de vocês possam ter sentido isso e não ter entendido como foi possível “gozar sem sexo tradicional”, gerando um certo espanto. Pois é, é normal e natural isso.
Você pode gozar em uma corrida, aula de luta, com massagem, sentindo dor, provocando dor, sendo submisso(a), sendo dominador(a), vivenciando práticas fetichistas diversas, situações de extrema adrenalina, tendo experiências de catarse diversas em sua vida pessoal em ambientes nada sexualizados. E descobrir que libido e orgasmo não é interdependente do “sexo genital” pode ser uma revolução em sua vida.
Entender essa relação é fundamental para que não passemos a patologização de algumas minorias para os assexuais — o que, também, é gerar sofrimento e problemas de saúde mental para eles.
Isso, claro, não inibe uma observação de mudanças de frequências sexuais suas. Mas não julgue ou adoeça o outro por não ter a mesma (as)sexualidade que ele.
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Três provocações longas, mas necessárias. A interseção entre sexualidade e saúde mental precisa ser discutida. Trazer esse espaço de discussão foi um desafio (o qual não sei se foi bem-sucedido, mas espero que tenham gostado)
Infelizmente, essas discussões, que deveriam ganhar voz e visibilidade, são inibidas pelas próprias plataformas que utilizamos para disputar espaços e narrativas. Um exemplo é o shadowban intensificado do Instagram por conteúdos que tenham a simples menção à palavra “sexo”, obrigando produtores de conteúdo sobre sexualidade a, surrealmente, precisarem utilizar grafias como “se.xo” para não serem penalizados.
Por isso, levem isso para suas conversas pessoais. Grupos de amigos, familiares, colegas de trabalho. Extrapolem as barreiras do digital (em um mundo pós-pandemia). A sociedade não vai nos deixar pedir licença para mudarmos essa conjuntura.
E, por favor, compartilhem suas opiniões por aqui! Vamos abrir essa discussão, dialogar, trocar ideias, contrariar posicionamentos se for preciso. Assim poderemos construir sínteses interessantes sobre a temática.